DA IMPORTÂNCIA DE SER CRIANÇA

Devo dizer que tive uma infância feliz. Não éramos ricos, mas numa família em que havia cinco filhos, um tio da idade do meu irmão mais velho (criado pelos meus Pais, porque a mãe morreu pouco depois do parto), e outro tio da idade do meu irmão mais novo (os dois tios irmãos de minha Mãe) nunca tivemos falta de amor e carinho, e sempre comida na mesa. A roupa dos rapazes passava dos mais velhos para os mais novos, mas eu, única rapariga e a mais velha das primas, não tinha ninguém de quem herdar a roupa. Tinha três vestidos, um a vestir, outro a lavar e o terceiro a passar a ferro. No meio de tantos rapazes, era uma autêntica maria-rapaz, e o ar angélico da foto não mostra o muito que fiz passar à minha Mãe. Gostava de jogar futebol (era guarda-redes), batia os rapazes em corrida, trepava às árvores e aos muros, e tinha os joelhos alternadamente feridos. Ia para as aulas montada numa cana a fazer de cavalo (e tinha vários...), roubava a bicicleta do meu irmão mais novo e ia passear até ao farol (ficava perto de casa, cerca de 500 metros), e detestava os vinte canudos que a Mãe, embevecida, me fazia todos os dias. Um dia, o barbeiro foi lá a casa para cortar o cabelo aos rapazes. Assisti ao corte dos três primeiros e perguntei se também podia cortar o meu. -"Se a senhora deixar...", foi a resposta. Nâo quis ouvir mais. A correr, fui ter com a Mãe, distraída com qualquer problema da casa, e perguntei se podia cortar o cabelo. Disse que sim, sem perceber bem o que eu estava a pedir. Corri para a sala onde estava o barbeiro e disse: -"A minha Mãe mandou cortar por aqui!". O "aqui" é o que se vê na foto, para grande desgosto da Mãe, quando me viu. O cabelo cresceu e lá voltei aos canudos. Mas tive um ou dois meses de liberdade, embora tivesse de suportar o laçarote...
Acho que as crianças, actualmente, não sabem brincar como nós brincávamos, em casa ou na rua. Ninguém as deixa ir para a rua - nós não tínhamos trânsito e podíamos fazer as balizas com duas pedras no meio da rua, deixando o espaço para os jogadores correrem com a bola feita de meias velhas. Elas têm a play-station, a Wii, a Nintendo, o telemóvel e o computador, mas não criam os laços de camaradagem e de amizade, que perduram ainda hoje. Porque, para além do futebol e das corridas, todos nós (éramos cerca de vinte em Nova Lisboa, e cerca de quinze em Novo Redondo), rapazes e raparigas, brincávamos às escondidas, aos polícias e ladrões, fazíamos teatro, cantávamos, saltávamos à corda e jogávamos à "macaca", aos queimados, etc., etc. E o tempo de sermos crianças deixou uma marca indelével nas nossas personalidades.

5 comentários:

Lina Arroja (GJ) 30 de agosto de 2010 às 11:38  

As pessoas pensam que têm mais liberdade hoje, mas na verdade é o contrário, estão presos pela informática, pelos jogos dentro de portas, pelos passatempos constantemente arranjados e organizados por outros. Hoje, a liberdade dos mais novos é muito relativa a dos adultos também. No nosso tempo (frase que nunca pensariamos dizer...)as brincadeiras tinham imensa imaginação.
Gostei da sua fotografia, Dreamer. Angelical, qb. ;)

Dulce Braga 31 de agosto de 2010 às 02:17  

É Dreamer
as ruas viraram "sites" da internet!

fugidia 31 de agosto de 2010 às 23:53  

Sim, sim, mas quem é cibernética todos os dias, han, han?
:-)))

Bacouca 2 de setembro de 2010 às 17:29  

Dreamer,
Que infancia mais descontraída e feliz que tivemos! Faziamos teatros para vender umas rifas, brincavamos as senhoras com os sapatos das nossas mães,
pintavamo-nos às escondidas, faziamos cozinhados com o que havia no chão e enfeitavamos os bolinhos. As bonecas tinham horas para comer, dormir e passear de carrinho.
Jogavamos à cabra cega, às estátuas, etc, etc.
Como a nossa imaginação funcionava!
Belos tempos!
Um beijo

Luísa A. 4 de setembro de 2010 às 10:22  

Creio que a principal diferença, Dreamer, era que o mundo em e com que nos entretínhamos, na rua ou em casa, era «criado» por nós, pela nossa permanentemente interpelada imaginação infantil. Hoje, os brinquedos já trazem com eles o mundo em e com que é suposto que nos entretenhamos. Até os Legos – o meu brinquedo preferido em criança – que se resumiam então a peças soltas de formas variadas, cumprindo-nos a nós o trabalho de «arquitectura», vêm hoje empacotados e preparados para construções pré-definidas. Não consigo apreciar se e em que medida isto circunscreve o pensamento, mas algum efeito limitativo há-de ter. :-)
P.S.: E não há fotografia com os canudos? ;-D

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