Ano Velho, Ano Novo

Estive a fazer uma revisão do ano que está mesmo a acabar e chego à conclusão de que nada fiz de extraordinário. Não mudei o mundo, não escrevi uma obra-prima nem compus uma sinfonia. A vida correu num rame-rame apagado, sem perspectivas, sem nada de entusiasmante...
E o que espero eu do novo ano? Mais saúde, mais amor e mais paz? Não é isso que espero todos os anos? Para quê fazer projectos se não chego a realizá-los?
Mesmo assim, desejo a todos um Feliz Ano Novo!

Uma Vez num Estábulo

A noite estava estranha: negra, abafada, mas fria ao mesmo tempo. A vaca tirou um pouco de feno e mastigou-o pensativa. Não conseguia dormir. O dia fora pesado: a trabalhar no campo, com o arado, quase sem descansar. Quando regressara, à noitinha, pensara no feno fresco e na água que a esperava, e esse pensamento dera-lhe ânimo para chegar ao estábulo. Estava tão cansada! Julgara que adormeceria logo que comesse e, afinal, estava para ali às voltas, sem conseguir fechar os olhos.

Olhou para o burro, que dormia regalado. Com uma ponta de inveja. Assim que chegara, comera a ração, e deitara-se a dormir. Nem tiveram a conversa habitual. Era talvez isso que lhe fazia falta. Aquela troca de impressões sobre o dia fazia parte da sua rotina. Já não podia passar sem ela. Mas o burro estava cansado e adormecera logo. Apenas lhe dissera, enquanto comia, que havia muito movimento na cidade. Chegara imensa gente de fora. E mais nada. Ela que adivinhasse o resto. Gostaria que lhe contasse como eram as pessoas, se vinham a pé, se traziam crianças... Nada lhe dissera. Era assim aquele burro: quando cansado, nada o faria falar.

Tinha vontade de o acordar, para lhe fazer algumas perguntas, mas não se atrevia. Podia sentir-se mal disposto e dar-lhe algum coice, nunca se sabe... O melhor que tinha a fazer era acomodar-se e tentar dormir. Amanhã viria um novo dia de trabalho e tinha de estar repousada. Mas, antes, resolveu ir até à porta.

Que noite escuríssima! Não se lembrava de uma noite assim, por aquela altura do ano. Nem uma estrela brilhava no céu! Decididamente, o melhor era dormir. Voltou-se, de repente. Que barulho era aquele? Pareciam passos... Quem seria, a esta hora? Podiam ser ladrões. Ficou receosa. Já uma vez tinham tentado roubá-los, a ela e ao burro.

Resolveu acordar o companheiro. Juntos podiam defender-se melhor. Os passos aproximavam-se cada vez mais. Inquieta, chamou-o. Mas ele estava a dormir profundamente e nem a ouvia. E os passos mais perto! Abanou-o com força e nem lhe deu tempo a que resmungasse. Excitada, obrigou-o a escutar. Bem desperto, o burro organizou a defesa. Cada um, do seu lado da porta, bem escondidos, prontos a atacar. E assim ficaram, mal ousando respirar.

A porta abriu-se e apareceu um casal. Suspiraram aliviados e avançaram para ver uma Mulher, à luz fraca transportada pelo Homem. Ela era linda, mas via-se que estava muito cansada. Vinham cheios de pó, e percebia-se que tinham feito uma longa jornada.

Sem saber porquê, a vaca teve um desejo imenso de a acarinhar, mas lembrou-se de que não era compreendida pelos homens. Olhou para o burro. Também ele estava impressionado. Havia algo de misterioso naquele casal. Desde a sua entrada no estábulo, este não parecia tão escuro.

Então a Mulher sentou-se na manjedoura. Via-se que não podia dar mais um passo, de cansada que estava. E, nessa altura, a luz apagou-se. Ouviu o Homem dizer que ia procurar lume, e sentiu-o sair. Aproximou-se da Mulher e lambeu-lhe uma das mãos. Era a única maneira que tinha de lhe dizer que não tivesse medo, porque eles estavam ali para defendê-la. E, coisa estranha, parece que a Mulher compreendeu, porque lhe afagou a cabeça.

Chegou-se para o lado, a conversar com o burro sobre os acontecimentos. A Mulher estava quase a dormir.

De repente, o estábulo encheu-se de luz e milhares de vozes entoaram um cântico suavíssimo. Surpreendidos, os dois animais viram a Mulher de joelhos, junto da manjedoura. Aproximaram-se mais e depararam com um Menino, que estendia os braços.

Nesse momento, entrou o Homem com a luz. Também ele caiu de joelhos. Criaturas aladas andavam em volta, cantando.

A vaca tinha a impressão de que o tempo parara. Mas o seu espírito prático prevaleceu, depois de uns momentos de pasmo. Lembrou-se do frio que estava. Hesitante, devagarinho, aproximou-se mais e começou a aquecer o Menino com o bafo. O burro seguiu-lhe o exemplo e os dois aqueceram o corpinho tenro.

A Mulher libertou-se da sua contemplação e envolveu o Menino em faixas. Depois sorriu-lhes, e a vaca sentiu-se reconfortada. Passara o cansaço. Ficou, com o burro, junto da manjedoura, e dali assistiram a um cortejo de gente com oferendas para o Menino.

Nos dias que se seguiram, a vaca andava radiante. Enquanto trabalhava, pensava impaciente no regresso. E à noite pouco dormia. Preferia contemplar o Menino e assistir ao vaivém das pessoas que O iam visitar. Até vieram uns reis, de terras longínquas...

Um dia, tão silenciosos como tinham vindo, o Homem e a Mulher arrumaram os seus poucos haveres. A Mulher agarrou no Menino, fez um afago aos dois animais, e partiram.

Nessa noite, a vaca e o burro não dormiram. Recordaram, vezes sem conta, tudo o que lhes acontecera no seu humilde estábulo. Ninguém lhes disse, mas ambos sabiam que os visitara o Criador.

Escrito por mim em Janeiro de 1967. Penso que está de acordo com a época. Bom Natal para todos!

Livros outra vez...

O livro "Cidade dos Sinos", depois de algumas peripécias, como todos os romances de amor, acaba bem, com o clássico "e foram felizes para sempre". Para uma garota adolescente era o máximo. Mas o livro marcou-me na medida em que me levou a procurar saber mais sobre o poeta e a apaixonar-me pelos seus poemas. Outro livro, que marcou a minha pre-adolescência foi "Os Sonhos de Kathy" (em inglês "What Kathy Did". É a história de seis irmãos, orfãos de mãe, que vivem com o pai, médico, e uma tia que procura ajudar. Kathy é a mais velha, pouco preocupada com os irmãos e muito senhora do seu nariz. Desobedecendo às ordens do pai, vai andar no baloiço, que o pai estava a instalar e que ainda não estava pronto, a corda rebenta e Kathy acorda no quarto, cheia de dores, e descobre, para seu horror, que não poderá andar. A transformação que se opera na vida e no temperamento da rapariga é notável. Depois da morte da tia, chama a si o governo da casa, sentada na cadeira de rodas, e torna-se o centro da vida dos irmãos mais novos e do próprio pai. Por fim, consegue voltar a andar. Há um outro livro, sequela do primeiro, que nunca consegui encontrar. São leituras levezinhas, próprias de adolescentes, mas que as meninas de agora não apreciam, seduzidas pela televisão, os chats da internet, os namoros, as discotecas, os i-pods e os telemóveis. No meu tempo não havia nada disto, e por isso lia tanto. Os tempos são outros, dirão. É verdade, os tempos são outros e os interesses mudaram. No entanto, não há nada como um bom livro para me fazer esquecer tudo o que me rodeia, mesmo que o cenário seja uma casa antiga de Inglaterra, ou as pradarias da América, ou, ainda, a casa já um pouco velha das "Mulherzinhas". Neste livro da Kathy, ela tem uma conversa com o pai, (quando ainda andava), porque não era capaz de assumir os seus erros e deitava as culpas para os outros. A espécie de provérbio que o pai lhe diz, ainda hoje norteia a minha vida particular. É assim:
Por causa de um cravo, perdeu-se uma ferradura.
Por causa de uma ferradura, perdeu-se um cavalo.
Por causa de um cavalo, perdeu-se um cavaleiro.
Por causa de um cavaleiro, perdeu-se a batalha.
Por causa de uma batalha, perdeu-se uma guerra.
Por causa de uma guerra, perdeu-se o reino.
E tudo por causa de um cravo.

E por aqui me fico hoje.

Livros

Houve dois ou três livros que me influenciaram bastante na infância e na adolescência. Mas hoje quero falar apenas de um, que li com onze ou doze anos. Chama-se "Cidade dos Sinos" ("City of Bells" em inglês), de Elizabeth Goudge. É uma história muito simples, de um rapaz que regressa da 1ª Guerra Mundial, coxo de uma perna, e que vai viver com os avós numa terra pequena, onde o avô é cónego. Este avô tem em casa duas crianças, Anthony, seu neto e primo do protagonista, e uma rapariga, Henrietta, que foi buscar ao asilo. Jocelyn, o protagonista, resolve abrir uma livraria na praça da cidade, numa casa fechada há muito, desde que o antigo inquilino desapareceu sem deixar rasto. E Jocelyn acaba por descobrir que o antigo inquilino escreveu uma peça de teatro, género autobiografia, que deixou incompleta. Se agucei o apetite, devo dizer que este livro existia numa edição da Minerva e que não era tradução fiel, agora que posso compará-la com o original que uma amiga fez o favor de me comprar em Londres já há uns anitos. O mais importante deste livro (para mim) foi o ter descoberto um poeta inglês, que eu não conhecia: Percy Bysshe Shelley. E o fascínio pela sua poesia dura até hoje. Foi um poeta tão importante para mim, que acabou por ser o tema da minha tese de licenciatura. Ainda hoje sei de cor poemas seus (em inglês). E, já na faculdade, o facto de eu conhecer aquele poeta levou-me a concentrar-me nos portas românticos ingleses. Mas Shelley é fantástico! Qualquer dia reproduzo aqui a sua Ode ao Vento Oeste que é linda!
Para o que me havia de dar hoje! É assim quando os problemas são muitos e grandes. Sempre posso refugiar-me na poesia...

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