Recordações II

A Madre Cip. , para além de professora de Físico-Químicas e de Desenho, ensinava-nos Trabalhos Artísticos. Mas o que recordo mais dela é a sua habilidade para contar histórias. Nas noites de chuva, em que não podíamos ir para o recreio, antes de ir dormir, sentava-se no meio das meninas da quarta divisão e contava-nos um bocado do livro que andava a ler. Ficávamos presas ao que ela dizia e não descansávamos, nas noites seguintes, enquanto não contava mais um pouco da história. Era uma espécie de Sherazade, parando sempre num momento culminante... Já agora, lembro-me de que foi graças a ela que tenho uma letra "bonita". Obrigava-me a fazer cópias em cadernos de duas linhas, e só ficou satisfeita quando, ao fim de uns dez cadernos, fui capaz de escrever como deve ser. E a letra ficou tão boa que, já mulher, era sempre requisitada para fazer as pautas (sim, que eu fui professora) do liceu, porque ninguém fazia tão bem como eu. E tudo graças ao empenho da Madre Cip.

Pôr do Sol

Sempre gostei do pôr do sol, não sei porquê. Gosto das cores, de estar em silêncio a olhar para elas. E quando o pôr do sol é sobre o mar, ainda gosto mais. Quando eu era adolescente, gostava de me sentar, com o cão ao lado, no muro do terraço que havia em nossa casa, situada num morro sobranceiro ao mar. Ficávamos os dois a olhar até o sol se esconder de vez. Não sei bem, mas andava obcecada a tentar ver o raio verde. Tinha lido o livro do mesmo nome, de Júlio Verne, e achava que também ia conseguir ver uma coisa que pouca gente tinha visto. Nunca vi o raio verde, mas fiquei, para sempre, com as cores metidas nos olhos de ver por dentro, que só existem no coração.

No Laboratório de Física e Química

O Laboratório de Física e Química do Colégio era numa espécie de anexo, junto a um dos portões. Não teria muitos aparelhos, mas acho que tinha os mais importantes para o estudo da disciplina, que, naquele tempo, era muito teórica. Estávamos no 5º ano (Actual 9º) e a nossa professora, a Madre Cip., levou-nos para o laboratório a fim de fazer uma demonstração química qualquer. Não me lembro de qual, só retive o episódio. Estávamos nós muito bem, em roda da mesa e a Madre a explicar tudo o que estava a fazer (as meninas não mexiam em nada, só olhavam), quando começou a sentir-se um cheiro nauseabundo e, logo a seguir, o laboratório ficou cheio de fumo. Não pensámos duas vezes. Saltámos as janelas (acho que eram duas) e fomos para o parque, esquecendo a Madre lá dentro. Mas ela não se atrapalhou. Pôs um lenço no nariz e na boca, abriu a porta e foi para junto de nós. O fumo, fruto de alguma reacção química, desapareceu pouco depois. Só ficou o cheiro. Não voltámos para a aula, e fomos dispensadas até à próxima. É claro que aproveitámos para passear entre os jacarandás e mais ninguém soube do sucedido. A Madre não voltou a levar-nos para o laboratório. Ficou tudo na teoria...

Recordações

Hoje, não sei como nem porquê, comecei a recordar os meus anos de Colégio interna. Eu tinha catorze anos, quando fui frequentar o antigo 4º ano (8º de hoje) no Colégio das Doroteias. Foram anos engraçados. Andávamos sempre a toque de, não, não era de caixa, mas a toque de música. A Madre C. abria a janela de uma das salas de piano, sentava-se e desatava a tocar uma marcha, bem alto, para todas nós (divididas em cinco divisões, conforme as idades), marcharmos a caminho do refeitório ou das aulas. Usávamos um bibe creme, com dois bolsos na frente, e lá íamos, ou comer ou estudar. Também aprendi piano e canto com a Madre C. Era muito divertida. Quando me mandava cantar o solfejo: dó, dó, dó, ré, mi, fá, sol,sol... eu seguia aqueles trinados todos enquanto marcava com a mão os compassos: binário, ternário e quaternário. E a Madre C. cantava comigo, com as bochechas a tremer...Eu gostava muito de cantar e fiz parte do coro da capela. Era uma espécie de privilégio estar no coro. Uma vez, um dos meus irmãos deu-me um afia-lápis, que era o Rato Mickey. A figura media uns dez cms e tinha o afia-lápis metido nas costas. Passei a andar com o Mickey num dos bolsos, a cabecita e uma mão de fora, e, passado algum tempo, já ninguém me chamava pelo nome. Eu era a Mickey e assim fiquei durante os três anos que estive no Colégio. Bons tempos!

Trovoadas

As recordações, às vezes, surgem em catadupa, sobretudo num dia triste e de chuva como hoje. Lembrei-me de uma trovoada enorme que houve na minha terra, em Angola. O meu irmão mais novo e eu tínhamos medo da trovoada. Morávamos no alto de um morro e abarcávamos toda a vila (agora cidade). O meu Pai chamou-nos, levou-nos para a varanda, e começou a explicar a razão da trovoada. Fez-nos contar o tempo decorrido entre o relâmpago e o trovão, multiplicar por 240 e, assim, calcular a distância a que estava a trovoada. Ficámos ali, na varanda coberta e cheia de plantas, a observar os raios que caíam para lá dos morros. Nunca mais tive medo de trovoadas, nem mesmo quando já estava no colégio interno e víamos os raios a descer pelo para-raios da capela, que ficava mesmo em frente da sala de aula.
Bem gostaria eu de ter alguém ao lado para me explicar a razão das trovoadas que sinto dentro de mim...

Parecer-se com a mãe

Estive a folhear uma revista e parei na página que tinha um título sugestivo: "Estou a parecer-me com a minha mãe?", mais ou menos isto, porque não tenho a revista presente. Comecei a ler e cheguei à conclusão de que, realmente, me estou a parecer com a minha mãe, não só no físico como na maneira de ver certas coisas. Não acho que seja mau parecermo-nos com a nossa mãe, sobretudo se ela foi uma pessoa sensata e honesta. É claro que há diferenças: ela pertenceu a uma época em que as mulheres não tinham direitos. (Lembro-me de, em 1960, ela ter de pedir ao meu Pai uma autorização para ir a Madrid comigo e com a minha Tia, enquanto que eu, com 23 anos, não precisei de autorização nenhuma...). Fui habituada a ser independente. E essa independência custou-me certos problemas quando casei, porque o marido, embora se dissesse muito liberal, pensava à moda antiga. Com jeito fui compondo a minha vida, de modo a gozar dessa independência. Neste momento, já não posso falar assim, pois, agora, é ele que depende de mim, devido a doença, e lá se foi a independência. Mas voltado à mãe. Foi com ela que aprendi a fazer bolos, a bordar, a passajar, a lavar e a passar a ferro, tudo "prendas" de uma menina, mas, ao mesmo tempo, foi ela quem me incutiu o vício da leitura, e me mandou aprender pintura e piano. Foi ela quem lutou para que eu tirasse um curso (coisa que os meus quatro irmãos não fizeram), para não ter de depender de ninguém. Não me importo nada se disserem que estou a parecer-me com a minha Mãe. Ainda bem que estou.

Fugir

Ás vezes a vontade de fugir é tão grande... Que se lixem os outros!
Mas não consigo. Tenho de ficar, cerrar os dentes e rezar para que tudo melhore.
A vantagem é que saio mais forte de cada crise. E cresço interiormente.
Fugir não é solução. É preciso enfrentar a vida e dizer-lhe que não me assusta.

Rien de Rien - Edith Piaf

Quase


"Ainda pior que a convicção do não, a incerteza do talvez
é a desilusão de um "quase".
É o quase que me incomoda, que me entristece, que
me mata trazendo tudo que poderia ter sido e não foi.

Quem quase ganhou ainda joga,
quem quase passou ainda estuda,
quem quase morreu está vivo,
quem quase amou não amou.

Basta pensar nas oportunidades que escaparam pelos dedos,
nas chances que se perdem por medo,
nas idéias que nunca sairão do papel
por essa maldita mania de viver no outono.

Pergunto-me, às vezes, o que nos leva a escolher uma vida morna;
ou melhor, não me pergunto, contesto.
A resposta eu sei de cor,
está estampada na distância e frieza dos sorrisos,
na frouxidão dos abraços,
na indiferença dos "bom dia", quase que sussurrados.
Sobra covardia e falta coragem até pra ser feliz.

A paixão queima, o amor enlouquece, o desejo trai.
Talvez esses fossem bons motivos para decidir
entre a alegria e a dor, sentir o nada, mas não são.
Se a virtude estivesse mesmo no meio termo,
o mar não teria ondas, os dias seriam nublados
e o arco-íris em tons de cinza.
O nada não ilumina, não inspira, não aflige, nem acalma,
apenas amplia o vazio que cada um traz dentro de si.

Não é que fé mova montanhas,
nem que todas as estrelas estejam ao alcance,
para as coisas que não podem ser mudadas
resta-nos somente paciência,
porém, preferir a derrota prévia à dúvida da vitória
é desperdiçar a oportunidade de merecer.

Pros erros há perdão; pros fracassos, chance;
pros amores impossíveis, tempo.
De nada adianta cercar um coração vazio
ou economizar alma.
Um romance cujo fim é instantâneo ou indolor não é romance.
Não deixe que a saudade sufoque, que a rotina acomode,
que o medo impeça de tentar.

Desconfie do destino e acredite em você.
Gaste mais horas realizando que sonhando,
fazendo que planejando, vivendo que esperando
porque, embora quem quase morre esteja vivo,
quem quase vive já morreu!!"

Luís Fernando Veríssimo

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